domingo, 29 de maio de 2016

A vida no campo


O último livro do Joel Neto tem um título com um quê de romântico. A mim fez-me pensar nos cenários dos romances de Júlio Dinis, d'A Cidade e as Serras ou dos poemas de Cesário Verde. Um livro de homenagem à terra do autor, que também é a minha. Aos lugares, aos costumes, ao falar, às pessoas. Um livro que, sem qualquer sombra de cinismo, é um hino à Terceira. A visão é idílica, o olhar tem o encantamento próprio de quem está de volta ao fim de muitos anos, mas não deixa de, simultaneamente, ser bastante realista. Não é fácil viver numa ilha pequena como a nossa. Principalmente no inverno. É nesta estação que a nossa resiliência é posta à prova. Podemos queixar-nos, dizer que nesta terra não se passa nada ou aproveitar o silêncio e as chuvas para nos recolhermos e fazermos aquilo de que gostamos. Ler, passar serões à lareira, jantar com amigos, cozinhar. Ou aproveitar os eventos culturais que vão surgindo e que, afinal, não são assim tão poucos. É esta capacidade que distingue as pessoas felizes das outras, as amargas, cínicas, que desdenham da felicidade dos outros, da capacidade que têm de se contentar com as coisas pequenas.
Nem sempre gostei de ler o Joel. Não é segredo. Já lho disse e tudo. E ele percebeu e admitiu que ele próprio não se revê em coisas que disse. Mas é muito fácil um açoriano que chega à cidade grande deixar-se levar por um cosmopolitismo por vezes forçado. No fundo, queremos pertencer à tribo, ser iguais aos outros. Universais. Acho que é isso. Só com a idade nos damos conta de que a nossa riqueza está na nossa individualidade. Aí, o orgulho na nossa terra emerge. Começamos a dizer, deliberadamente, Queres enriciá? ou Bota sentido!*
Ao ler os livros do Joel (os últimos) penso na minha própria mudança. Em como há uns anos nem me passaria pela cabeça ter uma horta, arrancar ervas daninhas, estar atenta às luas e pedir chuva a S. Pedro depois de muitos dias de sol. Lembro-me de o meu avô o fazer e de eu sorrir, achando esses pensamentos demasiado rurais para mim. E tenho pena de não ter tido tempo de trocar com o meu avô dicas de agricultura e de não ter compreendido melhor essa sua faceta de homem do campo. Mas tinha vinte e poucos anos, lá está. Estava demasiado ocupada a ser uma menina cosmopolita, que, apesar de ter nascido numa ilha, queria provar que pouco ou nada tinha a ver com ela e com os seus hábitos. 
Este A vida no campo tem-me feito pensar nisto tudo. Tem sido com prazer que tenho (re)lido estes textos do Joel, desta vez agrupados por estações. Aquelas que, nos Açores, coexistem todas num dia.

* Queres causar problemas? ou Presta atenção!



Partilho convosco um excerto do texto de abertura, Anúncio, uma homenagem ao Ti José Nogueira, um homem rural que poderia ser o meu avô:


       O Ti José Nogueira enterrou-se ontem. Perguntei o horário do funeral na venda e fui despedir-me. Leu-se o Êxodo, de Primeira a Coríntios e do Evangelho Segundo São João. A igreja estava cheia e eu era o único que não sabia quando levantar sentar e cantar.
        Do Ti José Nogueira não rezará a História. Quem mudou o mundo não foram os camponeses honestos, que pagaram os seus impostos e encheram a igreja na freguesia no dia em que foram a enterrar. Dos aventureiros, dos inventores e dos facínoras - deles, sim, reza a História. 
        Por isso se inventou a literatura.



                     

5 comentários:

  1. Já o disse no post do FB, gosto muito de ler o Joel Neto e o texto que cita emociona-me sempre, embora já o tenha lido pelo menos duas vezes em forma de crónica. Dos camponeses honestos pode não rezar a História, mas são eles que a fazem. Anseio pela chegada do livro, que estas encomendas demoram sempre mais tempo a chegar à minha ilha, mais a norte no Atlântico.
    Os seus arranjos florais continuam lindos :-)
    Boa leitura e bis semana.

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    1. Olá, Ana.

      O Joel Neto tem feito homenagens muito bonitas às suas/ nossas pessoas. Muitos textos que não deixam esquecer pessoas como o Tio José Nogueira e outros homens e mulheres do campo como ele. Comovem-me sempre, estas coisas. Talvez por conhecer muitos senhores como este, com aquela bondade e sabedoria que já não se encontram muito.

      Os arranjos florais são das tais coisas pequeninas que me fazem bem. Fazê-los, aos fins de semana, e olhar para eles, todos os dias.

      Um beijo para si. E obrigada :)

      Ilídia

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  2. Há coisas que só conseguimos entender verdadeiramente, vivendo, sentindo. Uma dessas coisas é o sentido muito particular da vida numa ilha. E também não creio que a experiência limitada a uns dias permita construir essa ideia. Mas seja qual for o contexto, parece-me que o espírito é mesmo o de fazer o melhor, fazer pelo melhor. Concordo contigo. Não podia estar mais de acordo. E falámos mesmo há pouco, a antever coisas boas. Que assim seja.

    Um beijo.

    Mar

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    Respostas
    1. Acho que tens razão. Acho que nós, açorianos, somos mesmo diferentes. Temos de ser. E dentro do arquipélago, tão diferentes uns dos outros. No falar, nos costumes, na forma de estar.
      Realmente, não me parece que se consiga apanhar o espírito ilhéu em poucos dias. Principalmente a sensação de isolamento que paira, às vezes. Nas ilhas mais pequenas, sobretudo. Senti isso na Graciosa, quando vivi lá. Principalmente no inverno, com voos cancelados, que me impossibilitavam de vir a casa. Aqueles domingos eram diferentes. Intermináveis. Não há viagem de lazer que mostre isso.
      Uma boa noite para vocês. Bom regresso a casa.

      Um beijo,

      Ilídia

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  3. Gosto desse texto sincero. Nunca fui aos Açores, espero um dia ir aí. Identifico-me com alguns pontos expressos no texto. Já tive o sonho de viver numa grande cidade. No entanto, mudei de ideias quando fui estudar para Lisboa e percebi o quanto é estressante essa cidade caótica e densa. Enquanto que aqui, em Castelo Branco, é agradável a solidão entre os pinhais, em Lisboa, é constrangedor quando se está sozinho entre multidões e excesso de informação. Sinto-me mais feliz na minha individualidade do que quando estive integrado na "tribo". Uma vida serena vale mais que o apartamento mais caro de Lisboa...é um valor incalculável :)

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