domingo, 5 de fevereiro de 2012

Um convidado muito chic


Tocam à campainha. Deve ser o meu convidado. Abro a porta e encontro-o, no seu colete branco e relógio de ouro, cabelinho impecável e ridiculamente penteado. Também o bigodinho foi moldado com brio. Nas mãos, um ramo de rosas. Demasiado grande, com uns salpicos dourados e um laço vistoso, também cor de ouro. 
Tudo no Dâmaso grita opulência e mau gosto. O meu marido cumprimenta-o, contrariado.
- Vais convidar esse tipo? É um pedante. Convida antes o Ega. Esse ao menos é divertido.– discordou, quando lhe falei do jantar, uns dias antes. Respondi-lhe que até achava graça ao Dâmaso e que pretendia ensinar-lhe uma lição. Vai ser divertido, vais ver.
Sabendo do desprezo que o Dâmaso tem por tudo o que é português, achei que seria engraçado pregar-lhe uma partida.
Quando viu o prato que lhe servi, olhou-o com curiosidade e desconfiança:
- Que prato tão interessante...
- É uma novidade francesa. Está a fazer furor nos melhores restaurantes parisienses. Chama-se Croque-Monsieur au velouté lusitanien. Não conhece, Dâmaso?
Olhou-me, impressionado pelo título em francês e envergonhado pela sua ignorância.
- Creio… creio que já ouvi falar. Muito chic!
Consegui perceber um rubor a formar-se nas faces rechonchudas. Troquei um olhar cúmplice com o meu marido. O nosso convidado não percebeu, felizmente.
Para acompanhar a refeição, servi cerveja. Olhou-me de soslaio ao aperceber-se da falta de nobreza da bebida. Ao notar, porém, que se tratava de uma marca alemã, mudou imediatamente de atitude, enveredando por uma conversa acerca das qualidades do povo alemão e da superioridade civilizacional deste em relação ao português. O que ele não imaginava é que estava a beber a genuína cerveja lusa, que poderia encontrar em qualquer humilde taberna.
No fim, elogiou o jantar, a finesse da ementa:
- É uma pena, mas em Portugal nunca se inventarão pratos deste nível.
Com o meu ar mais sério, concordei e despedi-me. Olhei para o meu marido e sorri.
Consigo imaginar o Dâmaso a comentar, com os seus amigos burgueses:
- Vim agora de casa de uma gente muito chic. E comi um prato muito requintado, francês, cuja receita a dona da casa trouxe de Paris. Chic a valer!

Quando li sobre o desafio da Ana, pensei logo no Dâmaso, uma das personagens mais divertidas da literatura portuguesa. O Dâmaso, que continua tão atual. Pensei nos muitos Dâmasos deste país a quem me apetecia pregar partidas. Hoje em dia, esta não funcionaria, pois já toda a gente conhece a famosa francesinha. Mas o princípio seria o mesmo.

Francesinhas
(Receita do meu marido, nortenho)

Ingredientes para cada francesinha:
3 fatias de pão de forma
1 bife de porco
2 salsichas ou linguiças (daquelas muito fininhas)
2 fatias de chourição
1 fatia de fiambre
2 fatias de queijo(flamengo, por exemplo)
1 ovo estrelado (opcional) – não costumo pôr, acho que já há proteína que chegue, não vos parece?

Ingredientes para o molho – para 6 francesinhas bem regadas (e algum molho de reserva na molheira):
½ litro de água
100 g de polpa de tomate
50 g de manteiga
Piri-piri (a quantidade depende do gosto e resistência de cada um)
2 cervejas de 25 cl
1 caldo de galinha
Sal a gosto
50 g de amido de milho (maizena)

Preparação do molho (Método tradicional):
Num tacho, mistura-se todos os ingredientes, exceto o amido de milho. Vai-se mexendo, em lume brando, com cuidado para não pegar. Quando ferver, adiciona-se o amido de milho, diluído num pouco de água (apenas o suficiente para diluir bem – 5 a 6 colheres). Vai-se mexendo sempre, até engrossar (este processo demora bastante tempo, por isso algumas receitas levam sopa de rabo de boi, para ajudar a engrossar. No entanto, na minha opinião, o sabor desta sopa de pacote adultera completamente o sabor do molho).
Dica: Caso seja necessário, passar a varinha mágica, para desfazer eventuais grumos e deixar o molho homogéneo.

Preparação do molho (Na Bimby):
Colocar no copo todos os ingredientes, exceto o amido de milho, e programar 20 minutos, 100 graus, velocidade 1. Adicionar o amido de milho, diluído num pouco de água (apenas o suficiente para diluir bem – 5 a 6 colheres). Programar mais 5 minutos, à mesma temperatura e velocidade. Se for necessário, programar mais algum tempo, até que engrosse. No fim, programar 30 segundos, velocidade 7.

Montagem da francesinha:
Grelhar os bifes, previamente temperados com alho, sal, um pouco de vinho branco e pimenta, as salsichas, cortadas a meio, e as fatias de chourição, apenas até adquirirem um aspeto “enrugadinho”.
Colocar num tabuleiro 1 fatia de pão por pessoa, sobre cada uma, colocar um bife e uma fatia de fiambre, outra fatia de pão, as salsichas e uma fatia de chourição. Cobrir com uma última fatia de pão e duas fatias de queijo.
Regar generosamente com molho. Levar ao forno até que o queijo esteja derretido.
Transferir para um prato e servir, simples ou acompanhadas com batatas.

31 comentários:

  1. Ai meu Deus... vai ser o meu jantar de amanhã. Depois do Acores.rtp.pt, portanto para o tarde. Beijos Ilídia estava inqueta por esta partilha!!:)))

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  2. Não poderia estar mais de acordo. Os Maias são uma obra que perdura no tempo e que retrata muito bem a nossa sociedade. Aliás, se relembrar um pouco a obra, não evoluímos assim tanto. Para mim, Os Maias é a obra que me ensinou o significado de "diletantismo", atitude que hoje sei que anda de mãos dadas com a mentalidade do povo português. Francesinhas adoro, assim como o blogue. Bom domingo

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  3. Que delicioso!!!!!!
    O texto....o prato ...as fotos....tudo.
    Parabéns!!!!!
    Beijinhos

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  4. Ilidia, adorei a tua história. É de facto muito triste o desprezo que tantos dão ao país que os viu nascer.
    Uma boa francesinha, muito chique sim sra.
    Um beijinho e boa semana

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  5. Vou dizer uma grande barbaridade. Um segundo, estou a ganhar coragem. Nunca comi uma francesinha...:):) Pois é verdade!!
    Não por falta de oportunidade, mas por peso na consciência, embora tenha noção de que já tenho feito e comido coisinhas bem mais engordativas:):)
    A tua receita, no entanto, parece-me mais saudável do que o normal, ou pelo menos do que eu sempre pensei que fosse... Assim já me sinto mais tentada!
    Adorei a tua sátira, o teu convidado está muito bem escolhido e a descrição do jantar é deliciosa:)
    Beijinhos e um resto de um excelente domingo:)

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  6. Li atenciosamente a tua história, há tanta gente assim...é triste.

    Eu nunca provei uma francesinha, mas tenho vontade de experimentar.Afinal um dia não são dias!

    A receita que apresentas é maravilhosa, fiquei com água na boca!

    Beijinhos e bom domingo

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  7. Lídia, sei que sim :) Pensei em ti. Espero que gostem. Depois diz-me como correu.

    Mea, infelizmente não, não evoluímos muito. O Dâmaso (e Eça) continua muito atual. A boa literatura é assim. Permanece.

    Ivone, obrigada. Até amanhã ;)

    Gisela, obrigada. Enquanto não valorizamos o que é nosso, não avançamos. Temos tantas coisas boas neste país. É pena que haja muita gente que não as veja.

    Alice, é claro que não é receita para se fazer com muita frequência. Raramente como, por isso nunca fico com problemas de consciência. É um pecado que me sabe bem, muito de vez em quando. Não sei se a minha receita é mais saudável do que o habitual. Talvez diferente, por não levar sopa de rabo de boi, como a maioria.

    Obrigada a todas pelos comentários simpáticos. Beijinhos

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  8. Ana, experimenta. Também gosto muito desta receita. Quando conheci o meu marido, já ele a fazia. A receita veio de Santa Maria da Feira, de onde é natural, e é das melhores que já provei.
    Beijinhos

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  9. Excelente lição de moral! Por acaso há muitos Dâmasos por aí a precisarem de lições como esta. Achei a ideia muito engraçada. Também queria participar no passatempo da Ana, mas estou sem ideias :(
    A mesa está fantástica e a francesinha, mesmo apetitosa. Agora que já sei a receita do teu marido já posso experimentar.

    Beijinhos

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  10. Que delícia de texto! E que bom aspeto o das francesinhas!
    As fotografias estão 5*.
    Bj :)
    Maria

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  11. Excelente escolha, o Dâmaso é realmente um personagem muito actual (aliás, cada vez mais actual)a receita não podia por isso ser melhor. Tenho uma receita de molho de francesinha algures,tenho que a encontrar, foi-me dada por uma amiga transmontana que vive no Porto.
    E ainda tenho que me decidir pela minha personagem, ando a vacilar entre um personagem dum filme e o de um livro, se pudesse fazia os dois, mas o tempo esgota-se.
    Beijinho e resto de bom fim de semana
    Manuela

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  12. O que eu esperei por este convidado!
    Desde o primeiro momento que estava convencida que ia escolher um personagem do Eça.
    Adorei a escolha da ementa, ou não fosse eu ter um homem do Porto cá em casa a fazer-me descobrir as tradições do norte.
    Boa semana.
    Abraço

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  13. estu sem palvras... ... adorei o teu texto.
    Vou passá-lo para uma amiga britanica, com doutoramento em Eça
    Bjs

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  14. Francesinhas, que deliiiicia! Ficou com um optimo aspecto, digno de um restaurante :)

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  15. Aiii... adoro! São um dos meus pecados :P bjins

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  16. Ilídia,
    Fico tão feliz com esta tua participação!
    Quase apostava que ias convidar o Ega :)
    Imagino o Dâmaso à vossa mesa de cabelo esticadinho e testa suada, que partida lhe pregaste.
    Adorei a ideia e a receita das francesinhas. De apetite!!!

    bjs e boa semana

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  17. Não podias ter um melhor convidado...adorei as fotos, ficaram lindas..adorei o teu arranjo de flores, está um "must"!
    E claro, adorei a francesinha...

    Beijinhos

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  18. llidia gostei muito desta receita e do texto,já fico por aqui,
    convido para visitar o Chá da tarde e quem sabe,participar de uma receita e deixar algo também escrito,
    ´gosto de postar receitas dos blogs que visito espero que acveites...
    beijos

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  19. Ilídia, tenho andado um pouco afastada da blogosfera, como tive hoje oportunidade de te dizer. Como sabes, numa casa nova há sempre coisas para fazer e todo o tempo livre que tenho tem sido para tratar dos exteriores da casa, o que é tão terapêutico como cozinhar, apesar de bem mais cansativo. Quando vi o "teu" Dâmaso lembrei-me logo de outros Dâmasos que nos rodeiam diariamente, especialmente de um que pertence ao género feminino.LOL
    O teu texto está um encanto. Por momentos senti-me a ler Eça.
    Muitos parabéns!
    Para além do prazer da leitura presenteaste-nos com uma receita que exerce um elevado poder sobre as glândulas salivares.

    Beijinhos!
    Patrícia

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  20. Que bela sátira e um convidado bem actual. Adorei Ilídia!
    Quase que imagino o jantar, e adorei toda a descrição feita.
    E quanto à francesinha, adoro :)
    Um beijinho.

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  21. Boa tarde, chamo-me Nuno Neves e sou jornalista do Açoriano Oriental, de São Miguel.

    Estou a fazer uma reportagem sobre gastronomia regional e blogues de açorianas entusiastas pela arte culinária.

    E por esse motivo gostaria de falar consigo. Agradeço-lhe a atenção, os melhores cumprimentos

    e-mail: nunomartinsneves@gmail.com

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  22. Brilhante, a desconstrução do maior dos pedantes da nossa literatura. Não podia ser de outra maneira, com uma anfitriã como tu.
    E já tentei gostar de francesinhas. Um sacrilégio não gostar, tenho ideia. Ainda mais, quando se tem família no Porto. E um marido que nasceu lá. Mas é demais. Ao contrário do teu texto. Que é certeiro. Apetece ler outra vez:)

    Um beijo.

    Mar

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  23. Olá Ilídia:)

    Adorei! Criaste uma história que retrata fielmente a nossa sociedade que tem a mania de superioridade e que é mais chic do que este e aquele e no fim são uns pobres coitados. Acho que serviste uma refeição boa e chic demais para tal personalidade. Mas no fim ele adorou como também eu adoraria:)

    Boa semana!
    Beijinhos

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  24. Vou te contar amiga, texto 5 estrelas, e essa foto OHHHHH meu Deus !!!! que fome que eu tenho !!!!.. MARAVILHA Mesmo !!! JINHOs :)

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  25. Ilidia, adorei o teu jantar e a forma muito "chiq" que calaste o Dâmaso :D
    O Prato tão tipicamente português, não poderia ser mais apropriado ;)

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  26. Tinha a certeza que a Ilídia traria Eça!... E logo o Dâmaso. Esse presunçoso tão português ;) Com tanto de chique como de naif. E cairia que nem pato, com esta amada iguaria portuguesa e afrancesada.
    um beijo
    Babette

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  27. Obrigada a todas. Fico feliz que tenham gostado da minha partida ao Dâmaso. Afinal, ele merece, não é verdade?

    Moira, fico à espera de ver a sua receita. E a sua participação neste desafio, claro :)

    Mané, creio que me deixaste mais ruborizada do que o próprio Dâmaso. Que responsabilidade :)

    Patrícia, percebo perfeitamente. O início de uma casa consome-nos muito tempo. Sim, enquanto escrevia, também me lembrei de alguns "Dâmasos" :)

    Guida, Ana e Babette, é curioso que já estivessem à espera que trouxesse Eça. Neste mundo, as pessoas acabam mesmo por se ir conhecendo, não é verdade?

    Mar, não acho que seja um sacrilégio. Por acaso, apesar de gostar muito, percebo que não seja um prato fácil de se gostar. Muito pesado e com um molho muito forte. E, pelo que sei, não gostas muito de sabores muito fortes, não é verdade?

    Beijos para todas

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  28. Ilídia,

    Que excelentes escolhas! O Dâmaso é o meu pedante favorito e quase, quase também escolhi Eça. Fantástico o desenrolar do jantar e a ementa. Não podia ser mais adequada. Adorei o Croque-Monsieur au velouté lusitanien!!

    Um beijo*

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  29. Adorei Ilídia, não podias ter retratado melhor o Dâmaso! Perfeito!
    beijinho

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  30. Lídia, mas que introdução chic! Deliciosa a tua historia, muito bem retratada!

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  31. Ilidia,
    Como é que me tinha escapado este jantar? O convidado é um must e fizeste da francesinha, que tão aprecio, uma verdadeira estrela. Parabéns!
    Beijinhos

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O Acre e Doce é um blogue que celebra a vida de casa, principalmente os momentos passados à volta da mesa. É um blogue de coisas que nos fazem felizes, sejam uma refeição, um filme, um livro ou um ramo de flores frescas.