quarta-feira, 27 de julho de 2011

Três vezes

Foram só três vezes. Mas nunca mais se esqueceu. Lembrava-se de cada lugar, de cada detalhe, de cada prato. Absorveu todos os momentos, pois sabia que não ia ter muitas mais oportunidades de sair da ilha. Viveu tudo com muita força, para não perder nada. Para que cada imagem, cada ruído, cada cheiro ficasse gravado. Para que passassem a fazer parte dela. Mal dormia. Tudo era uma emoção. O mais pequeno ritual, tão banal para tantos, era vivido de forma intensa. A viagem de avião. A estadia nos hotéis. Os ruídos noturnos da cidade. As prostitutas que faziam negócio na rua. Louvado seja Deus, nunca pensei que com esta idade fosse assistir a uma pouca vergonha destas! A Torre de Belém. O Jardim Zoológico. O Museu dos Coches. Como ela gostou do Museu dos Coches! Sonhadora como era, creio que se imaginou uma princesa, sentada num deles. No Minho, jantou numa adega, a beber vinho verde. Em Fátima, comoveu-se, de joelhos, em frente a Nossa Senhora. No Alentejo, comeu açorda. No Algarve, viu praias de areia branca.  Ela, que pensava que eram todas de areia escura, como as nossas. Nunca mais se esqueceu de umas ameijoas que comeu, temperadas com uma erva parecida com salsa. Que coisa boa! Para não se esquecer de nada, ia registando tudo num caderninho de capa preta, na sua letrinha de quem só fez a quarta classe. Gostava de ter estudado mais, mas eram outros tempos. Os meus pais não me deixaram.
Tinha mais de sessenta anos quando saiu da ilha pela primeira vez. Ao chegar, trouxe presentes para todos. Como quem faz uma viagem muito longa. Disse à família: “Se morrer, vou satisfeita. Já saí daqui.” Só morreu dali a mais de uma década. Saiu da ilha mais duas vezes. Ao todo, três.
Mesmo só tendo viajado três vezes, soube como era o mundo para além da pequenina ilha Terceira. Ao contrário dela, muitos açorianos morrem sem conhecer o que há para além da linha do horizonte que veem todos os dias.


Ameijoas à Bulhão Pato 
Ingredientes (para três, que, por acaso, é o número de pessoas cá em casa):
1 kg de ameijoas
1 dl de azeite
4 dentes de alho, cortados em rodelinhas
coentros grosseiramente picados q.b.
sal, pimenta e sumo de limão q.b.

Preparação:
Colocam-se as ameijoas em bastante água, temperada com sal.
Levam-se os alhos ao lume, num tacho grande, a cozer um pouco no azeite. Juntam-se os coentros e, quando estão no auge de estalar, deitam-se as ameijoas e tapam-se. Vai-se sacudindo o tacho, andando com as ameijoas à roda de baixo para cima, até estarem todas abertas. Retiram-se do lume, polvilham-se com uma boa porção de pimenta, regam-se com bastante sumo de limão e servem-se.

FonteO Livro de Pantagruel, Bertha Rosa-Limpo, Jorge Brum do Canto e Maria Manuela Limpo Caetano, Temas & Debates


Notas:

1. Com esta publicação, junto-me à festa do 3º aniversário do blogue Figo Lampo, um blogue algarvio de que gosto bastante, com receitas, fotografias e textos realmente inspiradores. Muitas felicidades, Margarida!

2. Nos Açores, pelo menos na Terceira, os coentros não são uma erva tradicionalmente utilizada na culinária, ao contrário da salsa. 



figofinal.jpg


16 comentários:

  1. que bela história e que bela participação...bjokinhass

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  2. Para mim é tudo com coentros :) muitos coentros e ameijoas então é mesmo com eles. Quanto à história é muito bonita e deixou-me a pensar que é difícil colocar pessoas que hoje têm 70 anos num avião e mudar-lhes os hábitos. Nem por acaso gostávamos todos de viajar aos Açores com avôs incluídos... mas eles não querem nem ouvir falar de aviões. Ainda assim conheço muito boa gente que mora a 60km de Espanha e nunca foi até lá ah pois é e não têm o mar como obstáculo, esse fica ao lado da estrada :)

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  3. Estas palavras envolvem...quanto ao prato adoro, estão acompanhado de pão torrado para molhar no molho...tão bom :)

    Beijinhos

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  4. Bela receita, bela história...fico contente por estarmos juntas na Festa
    Beijinho
    Mané
    http://obolodatiarosa.blogspot.com/2011/07/biscoitos-de-alfarroba-e-amendoa-para.html

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  5. Que celebração do 3 magnífica! Relatas com excelência uma realidade que é a de muita gente aqui na nossa terra. E não falo apenas de pessoas idosas. Tenho muitos alunos com 15 e 16 anos que nunca sairam da ilha, nem para visitarem outras ilhas. A maioria nunca foi ao continente português.É verdade.
    Ilídia, vou torcer para que venças este desafio, apesar de saber que concorres pelo prazer que te deu escrever este texto e confecionar este prato.
    Um beijinho
    Patrícia

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  6. Que linda história, até vieram-me lágrimas aos olhos...Uma participação mesmo especial a tua. Gostei muito, muito.
    Beijinhos

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  7. História muito bonita :) E a fotografia tambem :)

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  8. UM TEXTO LINDO E COM CERTEZA REAL PARA MUITA GENTE.
    ESSA AMEIJOAS ESTÃO UMA MARAVILHA .
    BJS

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  9. Bela participação... e quem não gosta de umas belas ameijôas à bulhão pato no Verão?! ;)

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  10. A primeira vez que comi dessas amêijoas também foi numa visita ao Continente. O fascínio pelas coisas novas e triviais que descreves, é algo tão real e com a qual me identifico tanto. Texto lindíssimo, Ilídia! Beijinhos

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  11. Gostei imenso da história. É bem verdade que existe muita gente que nunca andou de avião, nem de barco por esse mundo fora. É a realidade do mundo e não só das nossas ilhas.
    Quanto ao prato não podias ter escolhido melhor participação para o 3º aniversário do figo lampo. Agora que gosto bastante dos coentros, adoro esse tipo de petisco.

    Beijinhos

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  12. Gostei de ler o seu texto que me deixou a imaginar personagens e cenários. Curiosamente nunca experimentei este tipo de ameijoas. Fiquei com vontade de o fazer um destes dias.
    bjs
    Fa

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  13. Obrigada a todas pelos vossos comentários tão simpáticos.
    Esta não é uma história ficcional. Apenas escrevi aquilo que guardo na memória do que me foi relatado pela protagonista, a minha avó materna.

    Fa, é um prazer tê-la por cá. Volte sempre. E experimente as ameijoas. Valem a pena :)

    Beijos

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  14. Ilídia, com este desafio tenho descoberto que há muitas veias artísticas por detrás destas cozinheiras de mão cheia. Adorei a estória, linda! E essas amêijoas nem se fala.. : )
    Obrigada por teres participado.
    Um beijinho

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  15. Muitos dos que vivem do lado de cá também morrem sem conhecer essas ilhas. Não conheço mas espero conhecer um dia destes ;) Sou mais de salsa que de coentros, aqui em casa ninguém é grande fã deles.

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O Acre e Doce é um blogue que celebra a vida de casa, principalmente os momentos passados à volta da mesa. É um blogue de coisas que nos fazem felizes, sejam uma refeição, um filme, um livro ou um ramo de flores frescas.