Para um açoriano, a fronteira é o mar. Só o mar. Falamos de fronteiras terrestres na escola, tal como falamos de rios e de outras coisas que nunca vimos. Para uma criança açoriana que nunca saiu da ilha, as fronteiras terrestres são uma abstração difícil de imaginar. Pelo menos eram, que hoje em dia, felizmente, muitas das nossas crianças já sairam de território português.
Para um continental, atravessar a fronteira não traz grande novidade. Já para um ilhéu traz um bocadinho de impossível. Para quem vive rodeado de mar, visitar outro país de carro tem sempre um sabor a magia. Nas ilhas, não há autoestradas com placas a anunciar São Miguel ou Graciosa ou Flores. Por mais perto que estejamos, há uma barreira enorme que nos separa. Uma fronteira intransponível. Para a passarmos precisamos de planeamento, de ajuda, de transportes que não são os de todos os dias. Por isso, ainda hoje, quando vejo uma placa a anunciar PORTUGAL ou ESPANHA todo o meu ser ilhéu emerge. Sinto que atravessei um bocadinho de globo. Acho que é daquelas coisas que um continental jamais compreenderá. É estranha, a sensação de estarmos em território português, com gente portuguesa, que fala português, passar um rio e ver gente parecida, mas ler placas em galego e ver pessoas, que podiam ser portuguesas, a falar uma língua que parece a nossa mas não é bem.
Passei uma semana em Pontevedra. E conheci melhor esta região de gente calorosa, que tem muito em comum connosco. Muito mais do que a língua e a literatura que nos unem. Olhamos para as pessoas na rua e julgamos estar em Portugal.
Pontevedra é uma cidade fresca, com uma atmosfera feliz. Muita água e muita gente. Muitas pessoas a pé, que no centro histórico os carros não são bem-vindos. O meio de transporte é as nossas pernas. E há até mapas que nos indicam quanto tempo levamos para chegar aos lugares. As casas de granito não diferem muito das do nosso Norte. Em Pontevedra (e noutros lugares da Galiza, como Santiago ou Cambados, por exemplo) são adornadas com galerias (marquises?) lindíssimas. Aquilo que normalmente associamos a algo sem graça, meramente utilitário, na Galiza tem um estatuto próprio que, ao invés de desfear, acrescenta beleza.
O gosto dos galegos pela comida é semelhante ao nosso, apesar de muitas das iguarias serem impossíveis de encontrar por cá. As vieiras, por exemplo, símbolo das peregrinações a Santiago de Compostela. As melhores foram-me servidas num furancho, um conceito que desconhecia, mas que achei absolutamente delicioso. Na Galiza, terra de vinho Albariño, há pessoas que, aos fins de semana, abrem as portas das suas casas e vendem o excedente do vinho que produzem, acompanhado por tapas que elas próprias preparam. Comida caseira, autêntica, regada por vinho sem rótulo, feito com as uvas das redondezas. No furancho que visitei, serviram-nos vieiras, polvo, mexilhões, tortilla, cabrito assado e vinho Albariño, como não podia deixar de ser. Cantaram-se músicas tradicionais e as pessoas das mesas do lado juntaram-se a nós, curiosas com a nossa diversidade. Daquelas experiências que só se têm mesmo pela mão dos locais, parece-me.
Da Galiza trouxe também livros, como não podia deixar de ser. Estou a ler Que me queres, amor? de Manuel Rivas, um dos escritores maiores daquela região. Comprei-o atraída por um excerto que vi do filme A Língua das Mariposas, adaptado do conto "A lingua das bolboretas", que conta a história de amizade entre um discípulo e o seu mestre, abalada pela guerra civil. Recomendo, ainda que não haja tradução para português. Todos os contos que já li são belíssimos e não é difícil ler em galego. Dá um bocadinho mais de trabalho, mas o esforço vale a pena.
Deixo o trailer do filme, que pretendo ver muito em breve.
A receita que vos trago não é galega (qualquer dia há de aparecer alguma), pois pouco cozinhei desde o meu regresso. É uma receita grega, que já fiz inúmeras vezes. Publicá-la nesta altura pode ser considerado uma heresia. Pimentos e tomates são frutos estivais. E, não obstante o nosso outono estar bem mais ameno do que o normal, há muito que o calendário anunciou o fim da estação do sol e dos banhos de mar.
Na Galiza, entrei em várias frutarias, à procura dos característicos pimentos padrón (os tais que unos pican y outros non). Nenhuma tinha. Não é a época, diziam-me invariavelmente. Há um respeito muito grande pelas estações. E saquinhos de pimentos com ar artificial como os que vemos nas nossas grandes superfícies não se encontram na Galiza. Tampouco os encontramos em restaurantes nesta altura. Tal como na Grécia não encontramos a típica salada grega a não ser no verão. Se os tomates não estiverem no ponto, doces e vermelhos e sumarentos, mais vale não os usar.
Ainda assim, arrisco a partilhar esta receita. Uma vez que os tomates e os pimentos são usados mais como recipiente, não creio que a receita perca muito por a fazermos na estação errada. Ainda assim, caso queiram respeitar este preceito, podem guardá-la e testá-la no próximo verão. A minha versão mistura diferentes aspetos das várias receitas que vi. Encontrei versões vegetarianas, com e sem queijo, com carne de vaca, de borrego e com atum. Preferi uma versão sem carne, com feta e passas. Podem ser utilizadas várias ervas diferentes. Usei endro seco, uma erva de que gosto muito e que acho que fica especialmente bem aqui.
Pimentos e tomates recheados
(Gemista)
Ingredientes para duas pessoas:
2 tomates grandes
2 pimentos (evito os verdes, por serem mais difíceis de digerir)
1 cebola média
2 batatas grandes
1 batata doce (opcional - nunca vi na Grécia, mas gosto muito)
2 dentes de alho
3 colheres de sopa de azeite
150 g de arroz
1 dl de vinho branco
1 colher de chá de endro seco (ou orégãos, na falta deste) + um pouco para polvilhar as batatas
2 dl de água
sal e pimenta a gosto
passas (ou pinhões) e queijo feta (opcional)
Preparação:
Arranjar os tomates e os pimentos: cortar uma tampa em cada um e remover o interior; reservar o interior do tomate e descartar o do pimento.
Fazer um refogado com a cebola, o alho e o azeite. Juntar a polpa do tomate e o vinho branco. Deixar apurar 5 minutos, em lume brando. Acrescentar o arroz, o endro e 2 dl de água. Deixar cozinhar 10 minutos, em lume brando (o arroz não ficará totalmente cozinhado, mas não há problema, pois o processo de cozedura terminará no forno). Retificar os temperos e juntar o queijo feta e as passas. Rechear os tomates e os pimentos com esta mistura (não deverão ficar totalmente cheios, pois o arroz incha no forno) e colocar a tampa.
Regar uma assadeira com um fio de azeite, colocar os tomates e os pimentos e, à volta destes, dispor as batatas e as batatas doces. Temperar as batatas com sal, pimenta e endro e regar tudo com um fio de azeite. Levar ao forno a 200 graus durante 35 a 40 minutos.
Que encanto de post! Tudo - desde as fotos e notas sobre a Galiza à receita de Gemista.
ResponderEliminarGostei desta tua publicação, pela forma como expressas o ponto de vista de quem vive numa ilha.
ResponderEliminarO que para nós, os que vivem no continente, é algo normal, habitual, banal até, para vós é uma barreira e muitas vezes uma limitação.
Obrigada pela tua partilha.
Beijinhos,
Cristina
Simply by Cristina
Que delícia tua escrita! Fotos lindas também. Obrigada.
ResponderEliminarA Galiza é a minha 'casa', é para onde vou quando preciso de Paz. É tudo o que disseste e mais ainda, é surpresa a cada visita.
ResponderEliminarOh, miña amiga Ilidia, azoriana de coração e xa galega de corazón: non sei se me gustan máis as túas receitas ou esa maneira túa de xuntar palabras neste texto tan requetefermoso.
ResponderEliminarGrandes novidades nos agardan e, agora si, un beijo para ti.
Oh, miña amiga Ilídia, non sei me gustan máis as túas receitas ou ese xeito tan fermoso que tes para xuntar as palabras que nos levan de coração a corazón. E agora si...un beijinho.
ResponderEliminarGrandes aventuras nos agardan.