domingo, 4 de janeiro de 2015

Sábado na horta. Um livro e uma crónica.

Hoje*, regressei à horta. Depois do almoço, agasalhei-me bem e dirigi-me ao canteiro das cenouras. Sabia que tinham de ser desbastadas, caso contrário, perder-se-iam no meio das ervas daninhas. Confesso que, quando vi a tarefa que tinha pela frente, esmoreci. Se na primavera e verão apetece passar a tarde lá fora, no inverno, a casa chama-nos, com o aconchego de velas, mantas e almofadas. No entanto, senti-me como que obrigada a cuidar daquilo que havia sido iniciado. Abandonar as cenouras que tinham sido semeadas pelo meu pai, na terra que ele preparara, não era opção. Assim, comecei. Não sei ao certo quanto tempo estive. Muito. Já não me lembrava de como era bom ficar assim com as mãos na terra. Literalmente, que não gosto de luvas. Gosto de sentir a terra nas mãos, enquanto arranco as ervas daninhas. No fundo, acho que gosto da sensação de que estou a fazer uma tarefa que requer apenas as minhas mãos. Mesmo que me suje, é de uma sujidade que faz bem, que sai com água. Parece que enquanto me sujo por fora me limpo por dentro. Vou pensando, enquanto separo as cenouras que servirão de jantar ao Serafim. Recordo as palavras que li de manhã no livro maravilhoso que a minha amiga Mar me enviou, juntamente com um bolo a saber a Natal, feito pelas suas mãos. Enquanto, sozinha, mexo na terra do meu canteiro de cenouras, penso nas palavras de José Tolentino de Mendonça, lidas de manhã: "A cultura contemporânea deixou de preparar-nos para a solidão. Na maior parte das vezes, é uma aprendizagem que temos de fazer em cima dos próprios acontecimentos, ou na sua dolorosa ressaca, e de forma muito desacompanhada. É como se a solidão fosse uma surpresa absolutamente improvável na nossa experiência humana, e não, como ao contrário é, um modo de existência completamente comum." E continuo, sozinha, a remexer na terra. E a pensar, na minha "solidão buscada". Entro em casa e corro para o duche. Não o duche rotineiro, de todos os dias. Em dias destes, o corpo tem urgência de água. Já limpa e hidratada, faço o jantar. Coisa simples: peixe ao sal. Enquanto assa, releio o texto belíssimo que o Joel Neto escreveu ontem no Diário de Notícias sobre a comida da minha amiga Lídia:

"A VIDA NO CAMPO
Joel Neto

De dentro

Para a semana vêm cá o Luciano e a Lídia. Já andamos nervosos. A Lídia é a melhor cozinheira a Oeste do Meridiano de Greenwich. Como a Terra dá a volta, é a melhor a Leste também. Que haveremos de servir-lhe?
Da última vez que os visitámos, ofereceu-nos uma Sopa Azeda, a que em alguns lugares se dá o nome de Caldo Temperado. Agarrou no meu prato, pôs-lhe duas fatias de pão no fundo e depois deitou-lhe várias conchas de um espesso caldo de feijão. Cheirava a canela e a noz moscada, e em volta dispersavam-se diferentes travessas com as carnes e os enchidos, as abóboras e as batatas doces cozidas naquele mesmo caldo.
Levei a colher à boca e estaquei. Lá fora, uma bruma descia pela encosta, impedindo-nos de divisar o mar – era como se todo o lugar dos Regatos se resumisse agora àquela casa, ao plátano em frente, à cozinha onde se concentravam aqueles cheiros.
Os antigos chamavam-lhe Comida de Dentro, e também nisso parecia haver uma rectidão. Provava-se outra colherada e logo desfilavam novos sabores vindos do próprio interior do tempo.
Comi tudo quanto me apeteceu, depois comi tudo o que pude e a seguir comi mais um pouco. Puxei de um cigarro, fumei-o devagar – e, quando acabei, pus-me a mordiscar novamente a carne de porco.
Então, senti como se começassem a sentar-se à minha volta os meus antepassados, os meus avós e os avós dos meus avós, os velhos da Terra Chã e da Terceira, os açorianos daqui até do povoamento e daí até ao início dos tempos, quando na manhã do Sexto Dia o Senhor olhou a sua obra e decidiu que estava, afinal, incompleta.
Não, desta feita não vai dar para nos socorrermos do velho Esparguete com Salva. Ou poderemos usar por uma última vez o truque de reforçar o álcool?"


* Na verdade, ontem, dia em que este texto foi escrito.








7 comentários:

  1. Procurar a solidão. Esse é um ofício que nos é próximo. Nos seus paradoxos todos, porque fazer comida pressupõe uma dimensão de dádiva. Um gesto de dentro para fora. Mas feito de solidão. Tal como andares a tratar do teu quintal. A fazer coisas com as mãos.
    E os quadradinhos a saber a Natal sempre chegaram. Um bocadinho imperfeitos, depois da viagem longa:) Mas chegaram.
    A crónica é uma homenagem belíssima. Inteira. A tua amiga Lídia tem um dom. As queijadas estavam maravilhosas. Do género de não nos esquecermos do sabor, do aroma.

    Um beijo.

    Mar

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    1. Nem sempre soube fazer isso. Fui aprendendo com a idade. Comecei a precisar de momentos só comigo. E muitos são passados na cozinha e no quintal. A tratar de mim enquanto trato dos outros.
      Estavam fresquíssimos, os quadradinhos. Chegaram na sexta-feira e no sábado já não havia ;)
      Sim, a Lídia tem um dom. Cozinha os pratos tradicionais de cá como ninguém. A Sopa Azeda de que a crónica fala é uma coisa divinal, daquelas que já não há muita gente que faça. Uma sopa a saber a canela e noz moscada, imagina :)

      Um beijo,

      Ilídia

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  2. Olá Ilídia,
    Sempre que venho aqui, saio inspirada :)
    Um Bom Ano para ti (e sucesso para a tua horta!)
    Um beijinho
    Teresa

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    Respostas
    1. Que bom :) É das melhores coisas da blogosfera. Inspiramo-nos umas às outras ;) Também saio sempre mais rica do teu Lume Brando :)

      Um beijinho,

      Ilídia

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  3. Olá Ilídia,

    Belíssimo texto! Hoje, reconfortou-me especialmente.

    Não se pode nada contra o que tem que ser mas, há certas dimensões da vida que nos deixam com uma sensação enorme de impotência. Queremos reconfortar e não sabemos como.

    Este exercício de solidão "buscada" ajuda.

    Solidão só interior porque me fez bem ver as fotografias dos quadradinhos a saber a Natal que eu também tive o privilégio de provar, embora do lado de cá do oceano e muito distante do local da sua origem.

    Pensar em tudo isto foi muito bom e fez-me bem.

    Um beijo do Algarve,

    Sandra Martins

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    Respostas
    1. Obrigada, Sandra :)

      Fico feliz que o meu texto lhe tenha feito bem. As suas palavras também me fizeram :)
      A solidão "buscada" é uma necessidade. Cada vez mais.
      Os quadradinhos eram uma delícia :) Os nossos desapareceram num instante. Os meus homens deram cabo deles em três tempos. E eu também contribuí, que também sou filha de Deus ;)

      Um beijo,

      Ilídia

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