domingo, 9 de junho de 2013

Olhar

Quando fiz o curso de fotografia, em 2011, li alguns artigos sobre o tema. Artigos técnicos, sobre velocidade, abertura, ISO e outros termos importantes para quem quer fotografias com bom ar.  E li algumas coisas sobre composição e visitei muitas páginas de fotógrafos, profissionais ou amadores talentosos. E percebi que a qualidade de uma fotografia passa muito pela intuição do fotógrafo. E uma das coisas que verifiquei, mais tarde, já de câmara na mão, foi que através da lente se vê o mundo com outros olhos. Com uma máquina nas mãos, procura-se beleza. Não a beleza óbvia, aquela que todos vemos a olho nu. Com a câmara procura-se a beleza escondida. Aquela que ninguém vê. Aquela que tem de ser desvendada. Com uma câmara na mão, aquilo que [vemos] a cada momento/ É aquilo que nunca antes [tínhamos] visto. É como se aprendêssemos a saber ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras...*
Entretanto, devido à minha assumida tendência para a dispersão (sou capaz de passar uma tarde na horta ou na cozinha, ou um dia no sofá, agarrada a um livro ou numa maratona de cinema ou séries, ou um serão na conversa com amigos...), tenho aprofundado pouco aquilo que aprendi, confesso. Umas fotografias a comida, aos meus homens, à horta, a um ou outro momento que me despertou especial interesse e pouco mais. 
Ontem, a meio das minhas tarefas domésticas, olhei pela janela, para a horta. E vi o meu pai, num momento de descanso, com o Manel no colo, trajado de spider-man. Fiquei uns momentos a observá-los. Comoveu-me aquele momento especial entre avô e neto. Há momentos que apetece congelar, de tão especiais. Fui buscar a máquina. E fotografei-os, ao longe. Acabei o que andava a fazer e fui ter com eles. E percebi que estavam a ver as abelhas a recolher o pólen das flores e que o meu pai estava a explicar ao Manel como se fazia o mel. E eu pensei que a felicidade era aquilo. A voz enternecida do meu pai, derretido com as perguntas curiosas do neto, e a vozinha infantil do meu filho, a descobrir mais um bocadinho do mundo. Inspirada, fotografei a horta e o jardim, que, neste momento, não está nos seus melhores dias. E percebi que pode haver beleza numa relva a precisar de manutenção. Que nem só uma relva verde imaculadamente cortada é bela. Vi beleza nas flores silvestres, que nascem no meio das ervas que ninguém quer. E nas cebolas, ainda na terra. E num pé de açaflor que nasceu espontaneamente, depois de ter ficado escondido todo o inverno, à espera de se mostrar. E enquanto colhia as últimas favas do ano, ia espreitando as ervilhas, já em flor. A beleza anda por aí. Nós só temos de a saber ver. 





* Versos do poema "O meu olhar é nítido como um girassol", de Alberto Caeiro

Com as favas que colhi e descasquei, com a ajuda do Manel, enquanto o pai, ao nosso lado, se dedicava ao bricolage, fiz umas favas escoadas, cuja receita aparecerá por aqui um dia destes.

11 comentários:

  1. Tirar fotografias é tão absorvente!!! Sempre que posso lá saio, de máquina em riste, preparada para aquele milésimo de segundo que faz as minhas delícias :)

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    1. A fotografia foi um gosto adquirido tardiamente, há cerca de dois, trÊs anos. Tenho pena de não ter tempo para aprofundar os meus conhecimentos como gostaria.

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  2. Querida Ilídia
    Escreves de forma maravilhosa!Quase consigo visualizar o Manel no colo do avô!
    Concordo com o que referes sobre a fotografia. As máquinas são importantes, os conhecimentos técnicos ainda mais. Contudo, se o teu "olho" não corresponder, o resultado final pode não resultar no que se entende por uma boa fotografia.
    Experimenta dar-me um F1 para ver o resultado ;)
    Um abraço de boa semana,
    Guida

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    1. Muito obrigada por esse grande elogio, minha querida. Em relação à fotografia, é isso mesmo. De que serve a técnica se não há sensibilidade? A composição e a edição acabam por ser mesmo muito importantes :)
      Um abraço,
      Ilídia

      PS: Ainda falamos este fim de semana, espero ;)

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  3. A imagem é de um poder imenso. Principalmente a imagem que "não mexe", a que cristaliza um instante. Como esse momento de que falas. Será ainda mais inesquecível, por causa do teu olhar que reparou. Ou que parou.
    Lindo de ver, o teu quintal. Mesmo que digas que precisa de manutenção. Mais próximo da ideia de uma naturalidade possível, assim.

    Boa semana, minha Ilídia. Dizem que vai fazer sol daqui a uns dias:)

    Um beijo.

    Mar

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    1. Foi um momento mesmo comovente, vê-los sentados numa pedra, num momento só deles. O Manel tem uma relação muito especial com o avô. Desde bebé.

      Um bom fim de semana.
      Beijos,
      Ilídia

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  4. Belo texto. De facto, "pelas imagens / entramos em diálogo / com o indizível" e fixamo-lo em nós.
    Parabéns, senhora professora, pela arte de captar o que somos.

    A.C.

    Citação de Ana Hatherly, "O que é o espaço?", in O pavão negro, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p. 37.

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    1. Muito obrigada, A.C. Pelas suas palavras. E pelas de Ana Hatherly.

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    2. António, gostei muito de saber que este anónimo eras tu :) E gosto das nossas conversas longas ao telefone :)

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  5. É, realmente um prazer ler os teus textos! Temos, de facto, muito em comum!!! Continua a escrever! Vou lendo e vou deixando de pensar...
    Bj Gd!
    M.

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    1. Minha querida. Fico sempre tão feliz quando te "vejo" por aqui :) Claro que sim, que temos muito em comum. Ou não gostaríamos tanto uma da outra :) Sim, tenta relaxar estes dias e não pensar demasiado. Entretem-te com coisas boas. Vai tudo correr bem. É o que desejo com muita, muita força.

      Beijos,
      Ilídia

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