domingo, 8 de julho de 2012

Fingimento


          Quando li sobre o tema deste mês do desafio “Convidei para jantar…” soube logo quem seria a mente brilhante que queria ter sentada à minha mesa. Com a mão a tremer, num misto de excitação e de nervosismo, redigi o convite.
 Quando abri a porta, reconheci-o imediatamente. Uma figura esguia, vestida de forma elegante, chapéu preto e sobretudo escuro, bigodinho bem aparado. Já em relação aos amigos, tive alguma dificuldade. Afinal, só lhes conhecemos a figura pelos desenhos que o seu criador fez.
Cumprimentei, calorosamente. Nem queria acreditar que estava em frente a Fernando Pessoa e aos seus heterónimos mais conhecidos. O senhor Bernardo Soares não veio convosco?, perguntei. Infelizmente, não. Tem andado um pouco desassossegado ultimamente. E está a escrever um livro. Mas agradece o convite.
Pedi-lhes que entrassem. Caeiro preferiu dar uma volta pelo jardim, antes do jantar. E se fôssemos todos?, sugeriu Reis. Fomos ver a horta, as ervas aromáticas, as hortênsias.


Caeiro deixava-se deslumbrar, cheirava as ervas, acariciava os vegetais. Parecia ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras. Reis tentava aproveitar o momento, mas de forma mais contida. Parecia haver uma sombra que o impedia de usufruir de tudo, de forma plena. Vem sentar-te comigo, Ilídia, à beira da horta. Fiz-lhe a vontade. Pessoa e Campos observavam Caeiro, com um ar triste. Como se quisessem ser como ele e não pudessem. Caminhavam devagar, cabisbaixos, como se estivessem muito longe dali. Não posso estar em parte alguma, confessou-me Campos, mais tarde. Reparei no ar enternecido de Pessoa a observar o Manel a brincar. Pediu-me um papel. Escreveu um poema. Ofereceu-lho.

Quando as crianças brincam
E eu as ouço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no meu coração.

Entrámos. Servi vinho. Beberam bastante. Menos Reis, bem mais comedido. Durante o jantar, pouco falei. Deixei-me deslumbrar pelas conversas dos quatro. Pessoa e Campos, dois génios atormentados. Reis, com aquela felicidade triste que o caracteriza. Caeiro, alegre e espontâneo. Tão brilhantes, todos. Enquanto os via comer, com vontade, o prato de abrótea e verduras que lhes tinha preparado, só pensava em como gostaria que aquele tivesse sido um jantar a sério. Não apenas um fingimento, criado na minha imaginação.




ABRÓTEA GRELHADA COM ACELGAS SALTEADAS E BATATA DOCE FRITA
(Para 4 pessoas)

2 filetes de abrótea, grandes (frescos)
sumo de duas limas
pimenta rosa
azeite q.b.
flor de sal q.b.
folhinhas de orégãos q.b.
1 molho de acelgas (usei verdes e amarelas)
2 dentes de alho
sal, pimenta preta e noz moscada
2 batatas doces grandes

Temperei o peixe com o sumo de lima, a flor de sal e a pimenta rosa. Deixei-o repousar 1 hora. Findo este tempo, sequei-o, com papel absorvente. Aqueci um grelhador, com um pouco de azeite e grelhei o peixe, pincelando-o com azeite e folhinhas de orégãos.
Entretanto, descasquei as batatas doces, cortei-as em palitos e pu-las na actifry, com um pouco de azeite.
Cortei as acelgas grosseiramente, piquei os dentes de alho e levei-os ao lume, com um pouco de azeite. Juntei as acelgas, temperei com pimenta preta, moída na hora, sal e noz moscada.
Em cada prato, coloquei uma porção de acelgas, sobre estas, metade de um filete e, à volta, os palitos de batata doce.

Com este post, participo no desafio "Convidei para jantar...", criado pela Ana e recebido, este mês, no Reino da Prússia.

13 comentários:

  1. Ilídia,
    Que convidados magníficos! Quatro mentes brilhantes numa só. Tão perfeito que nem tenho palavras!
    Obrigada pela participação!
    Beijinhos
    Sofia

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  2. Um post lindo. Feito com tempo. Convidados de primeira classe. Só é pena ter sido a fingir, mas imaginar, tal como recordar, é também uma forma de viver. Gostei muito do prato que lhes serviste e das fotografias. Imagino ainda a alegria de Caeiro ao admirar tanta beleza.
    Um beijinho.

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  3. Não podias ter escolhido uma Pessoa(s) mais simples? :) Gostei muito do teu texto! Beijinhos

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  4. Olá Ilídia
    Já tinha saudades dos teus textos e sugestões.
    A escolha do(s) convidado(s)é perfeita.
    A ementa também seria do meu agrado, obviamente.
    Uma boa semana.
    Guida

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  5. Engraçado, quando começei a ler o post e ainda não sabia quem era o personagem, pela descrição "figura esguia, chapéu elegante, preto" associei logo a Fernando Pessoa :) Escolheste os termos certos. Bem como a receita leve, a abrótea tão típica dos Açores (tanta que comi, frita, em casa da minha tia quando estive na Terceira de férias), o passeio para contemplação de tão bela natureza. Muito bom :)

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  6. Ilídia, soberbo o teu post.
    Adorei ler, tudo ao pormenor, com vontade de mais, de mais histórias.
    Caeiro deslumbrado com o teu jardim, como eu ficaria.
    Gostei das fotografias, do contexto, do texto, e da refeição suave.
    Parabéns. Beijinho.

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  7. Olá Ilídia, por aqui respira-se cultura, que bom;)
    Boa leitura, boa fotografia, boa comida, sem esquecer a natureza. É um prazer "ler-te",tens um dom para escolher as palavras.
    Um beijinho, boa semana.

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  8. Realmente ele foi um génio e ainda não veio outro assim, é provável que não venha.
    Beijinhos

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  9. Isso é que é arrojo:) Três convidados num só. Mais o universo todo que ainda está por conhecer. Finalmente consigo ver e ler o teu post. Não conseguia isso. Nem comentar. A ver se agora sim.

    Um beijo.

    Mar

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  10. Olá Ilídia,
    Estou sem palavras... é verdade, um espanto, este teu texto está um espanto de tão bom!
    Gostei imenso do passeio pelo jardim, da conversa, da refeição. Parabéns!
    Bjs

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  11. Eu disse-te que viria com tempo (estou a fazer um intervalo ;) para ler o teu texto. Magnífico. As fotos lindíssimas e inspiradoras. A tua mesa ficou repleta de "Pessoas" importantes, pena ser só imaginação. Porque acredito, e estou a ver, receberes Pessoa dessa forma... sem pôr e enm tirar :)
    Ainda não sei se vou ter tempo de participar... dessa vez é bem difícil a escolha ;)

    Beijinhos e continua a ser o que és... tu.

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  12. Lindo o texto, magnificos convidados e uma receita deliciosa.
    Beijinhos

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