Tinha de ser ele o meu convidado. Por todas estas razões, não podia ser mais nenhum.
Quando o convidei, aceitou prontamente. Com a simplicidade e humildade que o caracterizam. Atrasou-se um pouco. Desculpe o atraso. Encontrei leitores, ficámos na conversa. Claro que ficaram. Ele é mesmo assim. Longe da imagem de escritor inacessível, que fica a escrever e a fumar cachimbo no alto do seu pedestal, José Luís Peixoto abraça os leitores. Ouve-os. Comove-se com eles. Dá-se.
Ao vê-lo, todo vestido de preto, tatuagens e piercings, quase consegui adivinhar as conversas dos vizinhos, ao verem-no entrar: Aquela casa está cada vez mais mal frequentada :)
Durante o jantar, conversámos muito. Falou-me sobre a infância em Galveias, sobre os filhos, sobre a época em que deu aulas. Nos gostos musicais, divergimos. Apesar de me considerar uma pessoa com gostos bastante ecléticos, metal pesado não faz parte da minha cultura musical. Ele, por sua vez, adora. Falou-me dos Moonspell e tentou fazer-me perceber a beleza da sua música. Não me convenceu. Curiosamente, pouco falámos dos seus livros. Falámos de livros de outros. Recordou a emoção que sentiu quando conheceu Saramago, depois de ganhar o prémio com o seu nome. Falámos da nova geração de escritores portugueses: Valter Hugo Mãe, Gonçalo M. Tavares, João Tordo... Elogiou-os. Genuinamente. Nem uma pontinha de competição, algo a que escritores de outras gerações nos habituaram. E ouviu-me. Quis conhecer-me. Muito longe do escritor que acha que só ele tem interesse. Enterneceu-se quando se apercebeu de que o Manel já conhece A mãe que chovia, a sua estreia na literatura infantil.
Como sobremesa, servi-lhe uma flor de chocolate branco. Nada me pareceu mais adequado a José Luís Peixoto. Uma flor delicada, a contrastar com o negro do fundo. Se bem que, no caso dele, será mais o contrário: um fundo delicado, mascarado numa aparência negra.
Pudim de chocolate branco com cuajada
600 ml de leite
2 pacotes de cuajada
120 g de chocolate branco
1 pacote de açúcar baunilhado
Preparação (Bimby):
Colocar todos os ingredientes no copo da Bimby e programar 10 minutos, 90 graus, velocidade 3. Verter para a forma e levar ao frigorífico para solidificar.
Preparação tradicional (não testada):
Partir o chocolate em pedaços e levar ao lume (brando), juntamente com os restantes ingredientes, mexendo, até obter um creme homogéneo. Verter para a forma e levar ao frigorífico para solidificar.
Partilho convosco mais um dos seus textos sublimes. Daqueles escritos com o coração. Daqueles que nos deixam com um nó na garganta e a pensar que deve ser mesmo isto que se sente.
Desmantelamento de um rio
Arranco os autocolantes da parede do quarto do nosso
filho,
como se a faca eléctrica da cozinha me atravessasse o braço.
Sou eu que apago os seus desenhos na parede. Não são riscos,
são desenhos. Há lápis de cera espalhados e partidos pelo chão.
Depois de nós, esta morada terá outros nomes e chegarão cartas
pacientes à caixa do correio. Agora, são impossíveis de imaginar,
como o nosso ontem será impossível de imaginar. Foi aos poucos
que ficou apenas o sofá e as recusas e os armários esventrados.
Foi muito demoradamente que chegaram as noites em que durmo
no sofá, sob um cobertor oferecido pela minha mãe ou pela tua.
Por fim, tenho tempo para habituar os olhos às sombras e avaliar
a devastação, acordar com o frio da madrugada, o esquecimento,
e assistir àquela hora azul em que já não é de noite, mas em que
ainda falta tanto para ser de dia. Despejo no fundo de um saco
tudo o que está naquela gaveta que nunca ninguém arrumou.
À minha volta, há caixotes que servem para guardar os livros,
já estão divididos. Escolho o lugar para pousar os pés. Fizemos
coisas nesta sala vazia, tivemos pensamentos, aprendemos
alfabetos. Resta-me agora o que sempre tive e, como se caísse
desamparado na banheira, prossigo e continuo o meu trabalho,
como se batesse com a cabeça na esquina de uma gaveta,
prossigo e continuo o meu trabalho.
como se a faca eléctrica da cozinha me atravessasse o braço.
Sou eu que apago os seus desenhos na parede. Não são riscos,
são desenhos. Há lápis de cera espalhados e partidos pelo chão.
Depois de nós, esta morada terá outros nomes e chegarão cartas
pacientes à caixa do correio. Agora, são impossíveis de imaginar,
como o nosso ontem será impossível de imaginar. Foi aos poucos
que ficou apenas o sofá e as recusas e os armários esventrados.
Foi muito demoradamente que chegaram as noites em que durmo
no sofá, sob um cobertor oferecido pela minha mãe ou pela tua.
Por fim, tenho tempo para habituar os olhos às sombras e avaliar
a devastação, acordar com o frio da madrugada, o esquecimento,
e assistir àquela hora azul em que já não é de noite, mas em que
ainda falta tanto para ser de dia. Despejo no fundo de um saco
tudo o que está naquela gaveta que nunca ninguém arrumou.
À minha volta, há caixotes que servem para guardar os livros,
já estão divididos. Escolho o lugar para pousar os pés. Fizemos
coisas nesta sala vazia, tivemos pensamentos, aprendemos
alfabetos. Resta-me agora o que sempre tive e, como se caísse
desamparado na banheira, prossigo e continuo o meu trabalho,
como se batesse com a cabeça na esquina de uma gaveta,
prossigo e continuo o meu trabalho.
José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis
Com esta receita, participo em mais uma edição do passatempo "Convidei para jantar...", a decorrer, desta vez, no blogue De cozinha em cozinha passando pela minha.
Lindo!
ResponderEliminarQuero lê-lo... traz-me um livro logo à tarde.
Adorei os "contrastes"!
E os vizinhos... :D
Bj.
Maria
Levo-te até mais do que um ;)
EliminarBeijo
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarAdorei!! Ilídia, parabéns pela escolha.
ResponderEliminarLembrei-me dele e logo a seguir de ti, sabia que iria estar presente na tua casa.
Gosto muito e adorei o teu texto, escrito também de coração, e a delicadeza do pudim branco.
(já imagino as vizinhas coscuvilheiras... :))
Um beijinho.
Olá Ilídia
ResponderEliminarLinda essa flor e o texto. Cada vez que leio um comentário como o teu no Sabores, esboço um sorriso. É bom saber que a nossa partilha é útil.
Um bom domingo.
Olá,
ResponderEliminarAdorei ler o teu post! Aliás, como sempre! E essa flor está fantabulástica!! A forma é linda e assim branquinho fica mesmo bonito!
Bom domingo!
Ilidia, que boa escolha, do convidado e do pudim. Faço muitas vezes mas sempre de chocolate negro.
ResponderEliminarUm beijinho e boa semana
Um dos meus escritores de eleição. Deste autor apenas ainda li Cemitério de Pianos e Livro. A sua escrita comporta uma sensibilidade comovente. Com ele fico sempre a desejar que o livro não acabe. Aconteceu-me o mesmo ao ler o teu post.
ResponderEliminarUma participação muito bonita.
Até amanhã. E sim já me sinto melhor.
Beijinhos
Sou fã dele. Já tive oportunidade de o encontrar, e ele dá-se realmente aos leitores... :)
ResponderEliminarIlidia,
ResponderEliminarEscolheste um belissimo convidado e pelas melhores razões. José Luís Peixoto não escreve palavras, escreve sentimentos. A indiferença aos textos dele é simplesmente impossível. Tenho o "Abraço" em fila de espera, já que este ano retomei os meus hábitos literários que havia deixado em lume brando durante uns tempos. Obrigada pela participação tão rica e tão bonita. O teu convidado deve ter ficado encatado com a tua flor de chocolate.
Beijinhos.
Bom dia Ilídia
ResponderEliminarQuando vi o desafio deste mês intui que esta seria a tua escolha :) Ninguém se atreveria a levar apara casa o Peixoto antes de ti! Gosto muito da obra dele, sobretudo do Cemitério de Pianos. Como sabes, a minha profissão permite-me ir encontrado alguns escritores. Fiquei a pensar que também já deves ter estado com ele porque descreves com muita verdade a relação que ele tem com os da sua geração, uma honesta admiração.
Não vai ser fácil para mim escolher...
Um abraço de boa semana.
Guida
No fim de semanan andei afastada da net e dos blogues. Mas depois de me contares ontem que já tinhas recebido o teu convidado não resisiti e vim espreitar. Não podias ter escolhodo melhor. Ainda não tive a oportunidade de ler as obras deste jovem escritor, mas estou muito curiosa. Não te calas a falar dele ;)
ResponderEliminarGostei da flor (não tivesse uma igual;) e o pudim não deve esperar muito mais tempo para ser degustado em minha casa ::::)
Excelente participação.
Beijinhos
Ilídia,
EliminarNem vais acreditar, mas por pouco o tema do teu post é igualzinho ao meu, só troca o convidado!
Juro-te que só agora estou a ler o teu post e já tenho as fotografias do meu tiradas e o texto meio escrito...
Obrigada por mesmo com tanto trabalho teres tirado um pouco do teu tempo livre para participares. Gostava de me ter sentado convosco. Não só admiro imenso o teu convidado, como sou fan dos Moonspell, talvez a dois te conseguissemos convencer =D
Adorei a "aquela casa está cada vez mais mal frequentada", imagino que a minha chegada não ajudaria muito ;)
bjs e bom semana!
Muito boa escolha de escritor. Tenho vários livros dele e adoro. Já tive a oportunidade de trocar meia dúzia de palavras, numa sessão se autógrafos, e confirmo que ele é a simpatia em pessoa! Uma riquezura!
ResponderEliminarGostei do pudim florido :)
O escritor tatuado iria adorar receber uma flor assim. E ser recebido em tua casa. À tua mesa. Para depois prosseguir com o seu trabalho. Ainda iria escrever ao que soube, ser recebido com flores brancas. Os escritores devem ser assim, não? As coisas ficam dentro. E depois surgem. Em forma de flores que explodem em palavras.
ResponderEliminarUm beijo para ti. E nunca se sabe...pode ser que um dia venhas a conhecer o escritor com tatuagens que gosta de Moonspell:)
Mar
Sabia que ia ser a tua escolha... Por um dos posts de lá atrás...
ResponderEliminarDeve ter gostado da aparentemente não enquadrável flor branca.
Beijo
Babette
Esse pudim ficou com uma classe! Muito único e de uma simplicidade muito digna. Nunca li nenhum livro do JLP mas depois desta descrição vou com toda a certeza tentar conhecê-lo melhor e à sua obra :)
ResponderEliminarA tua flor ficou linda, o teu escritor não conheço mas agora fiquei com muita vontade, bonita participação. beijo
ResponderEliminarOlá Ilídia,
ResponderEliminarNão conheço o escritor, mas vou conhecer muito em breve, poruq adorei o texto!
A tua flor está magnifica...Parabéns!
Bjs
Mais um bom texto. Parabéns!
ResponderEliminarLuís Filipe Miranda
Estive a ler umas coisas dele, e tocaram-me especialmente. Talvez porque hoje está a ser "un giorno di" merda!
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